# 4736



Sabes, mãe, aquele sol doentio
De que tanto me falavas em miúda?
Eu ainda o sinto aqui mesmo,
Incidindo como uma faca de medo quente no meu cocuruto,
Agora em forma de gente e de gestos repetidos,
Todos comandados a ar,
Aquele espaço que sobra
Quando as razões nos abandonaram já há muito
E delas vemos só,
Ao fundo de uma avenida arborizada de outono,
O sentido, como um pé de sombra a desaparecer.
Até queríamos tê-lo chamado pelo nome,
Ter ali repetido perpetuamente o seu vocativo,
Como se fôssemos um eco
Cheio das vírgulas próprias do coração;
Até queríamos, como vimos em alguns filmes
De fotografia e banda sonora bem conseguidas,
- Dos que nos agarram pelo cinzento bonito -
Tê-lo retido como a um amante.
Mas sabíamos desde sempre:
Para o amarmos para sempre,
Ter-nos-íamos de livrar
De tantos ritmos, tantas coisas, tantas vidas, tantas culpas,
Que ali mesmo,
Da ponta extrema oposta da avenida,
Da ponta extrema oposta à vida,
Emudecemos, mãe,
Debaixo daquele sol doentio
Feito gume no cocuruto
De que tanto me falavas em miúda.

You know, mother, that sickly sun
That you talked to me so much as a girl?
I still feel it right here,
Striking like a knife of hot fear into my crown,
In the shape of people and repeated gestures now,
All commanded by air,
That leftover space
When reasons have abandoned us long ago
And of them we only see,
At the end of a tree-lined autumn avenue,
The meaning, like a shadow foot disappearing.
We even wanted to call him by name,
Perpectually have repeated his vocative there,
As if we were an echo
Full of commas heart inherent;
We even wanted to, as we saw in some films
With well-achieved photography and soundtrack,
- Of those who grab us by the beautiful gray -
To have held it like a lover.
But we have always knew:
That for love it forever,
We would have to get rid of
So many rhythms, so many things, so many lives, so many guilts,
That right there,
From the opposite end of the avenue,
From the opposite end of life,
We got silent, mother,
Under that sickening sun
Edged on my crown
That you talked to me so much as a girl.

Texto | Text: Maria Moreno
Fotografia | Photography: Vanda Cristina

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