"Caixa-mãe
Acordei com a sensação que era o teu dia de anos. Não tenho a certeza de estar certa. Há uma parte da minha memória que resiste em interiorizar as datas do teu nascimento e da tua morte, que resiste em decorar os marcos do princípio e do fim do corpo que me trouxe à vida. Talvez a resistência da memória venha de uma sabedoria maior do que eu, uma sabedoria que me chega através do esquecimento. Às vezes, pergunto-me onde estarás, se perduras etérea no espaço, se corres no vento ou na seiva dos grandes ciprestes que cobrem o sol. Depois, debaixo da sombra de tantas perguntas, lembro-me de um sítio inesperado onde ainda existes. Mãe, tu moras numa pequena caixa de latão pintada com flores, corações e estrelas. Uma caixa decorada com figuras coloridas que lembram uma felicidade primitiva e irrepetível. Tenho a caixa escondida no sótão, abro-a muito poucas vezes, tenho medo de perder a última recordação que temos. A recordação preciosa e palpável do dia em que nos sentámos para brincar com plasticina.
Quando abro a tampa, encontro bichos disformes feitos por aquelas que foram as minhas pequenas mãos, as mãos de uma criança dissipada no tempo. Misturadas com as minhas aberrações criativas, há também coisas feitas pelos teus dedos: um cisne azul, um peixe branco, uma árvore vermelha. No pássaro, no peixe e na árvore moram as tuas impressões digitais, tão nítidas como se tivesses modelado o mundo ontem. São essas impressões (as minhas e as tuas) o grande tesouro. Dentro da caixa, as nossas identidades unidas são as provas do instante eterno que partilhámos. Dentro da caixa, terei para sempre sete anos e tu celebrarás eternamente o teu vigésimo sétimo aniversário; eu não envelheço e tu não morres. Dentro de um pedaço de latão, respirará, nos pulmões infinitos do tempo, o nosso mundo de plasticina, colorido, privado e belo. Um lugar eterno, preenchido pelos meus monstros e pelas tuas frágeis criaturas."
Texto: Joana M. Lopes
Fotos: Cristina Vicente
Verdadeira viagem em palavras e em imagens!
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