# 1790



"O chão que piso range, as tábuas envelhecidas emanam o mesmo ruído que relembro da minha infância. O chão que me tornou naquilo que sou hoje deixou de existir, apesar do sinal sonoro que os meus ouvidos auscultam a cada passo. Estou sem chão. 
Restam-me as memórias das quais receio o desaparecimento dado o meu tempo já avançado. Dizem que depois de se ser mãe, a memória tende a perder-se aos poucos. Um disparate. Se assim fosse, a memória dos homens permaneceria intacta. 
Acredito no apodrecimento do nosso corpo no qual nos vamos perdendo de nós próprios. Um fenómeno biológico inverso semelhante ao nascimento. Não tenho memória de ter nascido, assim como receio desaparecer sem memórias da minha jornada por estas bandas. 
Não tenho medo de partir, sei que é a única certeza. Incomoda-me mais a dor que possa provocar naqueles que ficarem quando partir (se é que darão pela minha falta). 
Pesa-me porque me está a doer ter perdido o meu chão, ao qual não fui capaz de manifestar afeto, apesar de o sentir. Por ter sido dura e rude, a minha forma de amar. 
Faltou o abraço, essa incapacidade de juntar dois corpos e sentir-lhes os corações a bater em simultâneo sem saber de qual se tratava. E agora um desses corações deixou de bater e o meu parece ter abrandado o ritmo como se não merecesse esse batimento que me permite pisar o chão que perdi."

Texto e foto: Sandrine Cordeiro

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