# 1643



"Fazia já algum tempo que não se via ao espelho depois de sair da banheira, antes de ir trabalhar. Um hábito que se perdeu, assim como o trabalho que se esvaneceu num magro subsídio, prestes a caducar. O que seria da vida dela, questionava-se vezes sem conta.
Porém, naquele dia parou diante do espelho, não se recorda do tempo que passou a contemplar a embalagem que notava sinais de degradação. Contemplou-o como se contemplasse "A carcaça" de Soutine, tal como o fazia diante do calendário do talho onde trabalhara em tempos. Pelo menos, era um calendário de qualidade, pensou. Não exibia porcos nem outros animais abatidos para consumo e que, possivelmente, se expunham numa das suas vitrines.
Olhou-se, mas quis ver-se mais. Foi à cozinha buscar o estojo de cutelaria da especialidade em corte de carnes verdes. Dominava a técnica como ninguém. Talvez um resquício do desejo perdido de se vir a tornar cirurgiã...
Voltou, munida do estojo que expôs de forma organizada sobre a bancada. Escolheu o instrumento mais afiado e no seu reflexo, traçou uma linha entre as mamas de onde escorreu uma linha de um fluído encarnado. Continuou a operação até conseguir chegar ao seu interior, cortando pedaços de carne até chegar ao entrecosto. Deu um golpe certeiro com o cutelo para fraturar o esterno e ver mais de si. Queria tocar o seu interior. Afastou as costelas e, com uma das mãos ensanguentadas, apalpou o pulmão esquerdo. Sabia que o coração já não batia. Do pulmão tirou todas as manchas provocadas pelos cigarros que apagava no corpo. Uns atrás dos outros. Depois das manchas retiradas, uma a uma, fazendo-as desaparecer todas, também ela se apagou."

Texto e foto: Sandrine Cordeiro

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