# 5043








Cais do Ginjal

I

Junto a velhos carris cravados nas lajes do cais do Ginjal
De vagões desativados
E murais com retratos de homens de rosto duro e olhos de carvão
Grafitados nas paredes
E que me ignoram
Caminho desengonçada como quem se procura a si mesma
Uma indígena suburbana de saias levantadas e pernas enfiadas
Numas botas
Beges
Sujas e desajustadas
Nas orelhas umas argolas largas e prateadas
Que fazem um estranho barulho batidas pelo vento
Como música esquecida de um continente
De onde fui deportada

II

Nas grandes estruturas navais
Enferrujadas pelo tempo e esquecidas pela ganância dos homens
A mente pendurada num áspero cordão de aço
Observo o que resta de uma grande herança de homens pescadores
Sentados em bancos e nos pontões
Lançam ao rio espetados em anzóis
Sonhos, quimeras, mágoas, desalentos
Em canas curvadas e gastas pelas horas
E uma vida inteira fechada dentro de uma lata
Como conserva que azedou

III

Nas falésias casas amontoadas em ruínas
Como uma memória em escada
Sem vidros nem olhos nas janelas
Profundas como um abismo
Portas entijoladas com restos de madeira desventradas
Paredes como telas decadentes, cheias de palavras pintadas
Pisos com histórias desmoronadas
E no chão um bosque de gente esquecida
Silvas e arbustos que crescem como um caos
Pelo meio o espectro de uma árvore magnífica
Cheia de frutos rubros como ginjas maduras
Escorrem sonhos viscosos e traídos
Com um perfume que nos embebeda os sentidos

IV

Entalada num pórtico elevatório de barcos
Os pés como rodas sobre barras de ferro que descarrilaram
E ficaram estacionadas no cais do esquecimento
Escuto sons metálicos que ficaram guardados no leito do rio
Mulheres de passo apressado com cestas cheias de artroses na cabeça
Ancas largas, seios fartos e saias rodadas
E um pescoço que ficou torto pelo peso da existência
Espalhados pelo chão como um teatro de sombras
Homens com a alma embarcada em grandes arrastões
Camisas de tecido grosso arregaçadas
Cheios de sal e escamas nos braços que brilham como prata
Um sabor a vinagre na boca
São como páginas de um livro que alguém escreveu
E sepultou nas águas

V

Presos por cordas nos velhos atracadouros
Alinhados no paredão como espectros de ferro
Canoas, fragatas, faluas como navios fantasmas
Velas recolhidas e passageiros em terra
São como uma gigantesca manifestação do passado
Amontoada sobre o cais
Os rostos iluminados pela dourada luz do pôr-do-sol
Como uma despedida
Ficam a olhar petrificados o estranho trânsito fluvial
Cheios de veleiros e embarcações de luxo
Com gente sorridente que lhes acena com a mão

VI

Nas cadeiras desmembradas e atadas com panos
Espalhadas nas grandes plataformas junto a um terminal
Com corpos afundados nos estofos gastos
Sinto-me como Briseida a contemplar o horizonte
Sequestrada como um troféu na guerra de Tróia
Entregue como despojo aos caprichos de um guerreiro
Deixo-me ir na corrente na superfície a boiar
Como uma anémona indiferente
Até desaparecer na foz
Para trás a flutuar gentilmente com boias de salvação
Um Cacilheiro velho
E um Mestre cansado de navegar
Liga o motor para alcançar a outra margem.


Ginjal Pier

I

Next to old rails embedded in the slabs of the Ginjal pier
Of decommissioned wagons
And murals with portraits of men with hard faces and charcoal eyes
Graffitied on the walls
And who ignore me
I walk awkwardly like someone looking for herself
A suburban indigenous woman with her skirts up and her legs tucked in
In boots
Beige
Dirty and mismatched
In her ears, wide silver rings
That make a strange noise when the wind hits them
Like forgotten music from a continent
From where I was deported

II

In the great naval structures
Rusted by time and forgotten by the greed of men
My mind hangs on a rough steel cord
I observe what remains of a great heritage of fishermen
Sitting on benches and piers
Throwing hooks into the river
Dreams, chimeras, sorrows, discouragements
On reeds bent and worn by the hours
And a lifetime locked up in a can
Like preserves that have gone sour

III

On the cliffs houses heaped in ruins
Like a memory on a staircase
Without glass or eyes in the windows
Deep as an abyss
Doors hinged with the remains of gutted wood
Walls like decaying canvases, full of painted words
Floors with crumbling stories
And on the ground a forest of forgotten people
Brambles and bushes that grow like chaos
In the middle the spectre of a magnificent tree
Filled with fruits as red as ripe sour cherries
Slimy, betrayed dreams drip down
With a perfume that drenches our senses

IV

Trapped in a boat lifting gantry
Feet like wheels on iron bars that have derailed
And were parked on the quay of oblivion
I hear metallic sounds that have been stored in the riverbed
Women in a hurry with baskets full of arthritis on their heads
Wide hips, full breasts and swirling skirts
And a neck that was twisted by the weight of existence
Scattered across the floor like a shadow theater
Men with their souls on large trawlers
Thick fabric shirts rolled up
Full of salt and scales on their arms that shine like silver
A taste of vinegar in the mouth
They're like pages from a book that someone wrote
And buried in the waters

V

Bound by ropes on the old moorings
Lined up on the wall like iron spectres
Canoes, frigates, sloops like ghost ships
Sails down and passengers ashore
They are like a gigantic manifestation of the past
Piled up on the quay
Their faces illuminated by the golden light of sunset
Like a farewell
They stare petrified at the strange river traffic
Full of sailing ships and luxury boats
With smiling people waving their hands

VI

On the dismembered chairs tied with cloths
Spread out on the large platforms next to a terminal
With bodies sunk into the worn upholstery
I feel like Briseida gazing at the horizon
Kidnapped like a trophy in the Trojan War
Delivered as spoils to the whims of a warrior
I let myself go in the current, floating on the surface
Like an indifferent anemone
Until I disappear at the mouth
Back gently floating with lifebuoys
An old coxswain
And a Master tired of sailing
Starts the engine to reach the other shore.

Texto | Text: Ana Paula Jardim
Fotografia | Photography: Ana Gilbert

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